Várias são as histórias de vida de pessoas LGBTQIAP+ que precisam ser ouvidas, vistas e lidas. Pois, perceber as lutas e desafios que outros corpos LGBTQIAP+ enfrentam de forma diferenciada por conta de vários fatores sistemáticos, em comparação a outros corpos LGBTQIAP+, serve para cada um de nós entender a nossa posição na sociedade, reconhecer os privilégios que cada um de nós possui, e usar os mesmos para emancipar, visibilizar e proporcionar oportunidades para os outros corpos LGBTQIAP+ que não possuem os mesmos privilégios.
Tal como a história de vida da ALycia Varanda! Alycia é uma jovem mulher Trans que, quando mais nova achava que era uma menina Cis género, antes mesmo de perceber que estava em um corpo que para sociedade é de um menino.
Varanda, abriu o seu coração e falou acerca da exclusão e preconceito sobre os corpos das mulheres Trans e dos não-binários por parte de outras pessoas LGBTQIAP+, sendo vistos como não dignos de serem amados ou apreciados, bem como, os severos desafios e opressão que teve de enfrentar por parte da família dela.
Quem é Alycia Varanda?
“Alycia Varanda é o meu nome social! Sou uma mulher Trans , nasci no dia 1 de Julho, tenho 22 anos de idade, e actualmente estou comprometida. Sou natural de Luanda, cresci no Camama. Sou interprete, cantora, poetisa, e mais alguma coisa (rsrsrs)… Enfim, tenho uma veia forte para as artes”.
Como foi a tua infância?
“A minha infância foi boa até eu começar a perceber a real realidade e, entender que na realidade não era boa. Quando eu era mais nova, eu achava que eu era uma menina Cis género, e agia com naturalidade porque ainda não entendia sobre as questões de género e sexualidade. Mas quando eu passei a perceber as coisas e a sofrer bowling de diversas partes, entendi que eu era um tabu para a sociedade, e toda essa situação me deixava com muito medo… Mas Quando eu lembro da minha infância não consigo lembrar de momentos muito bons, porque os ataques de bowling não me permitiram ter bons momentos. Lembro que logo no meu primeiro ano escolar eu já sofria bowling na escola, mas as coisas se intensificaram quando eu tive de ir para uma outra escola e, nessa escola eu sofria ataques de todas as apartes, alunos e professores, e tinha um professor em especifico que me batia com a desculpa de que eu não fazia as tarefas, no fundo era porque não gostava de mim por expressar feminilidade, e, tudo isso fez com que eu me tornasse uma pessoa tímida e agressiva. Era mais como uma forma de me defender contra os ataques que eu sofria, daí quando alguém praticava bowling comigo eu partia para agressão física”.
E quando é que percebeste que na realidade não eras uma menina Cis género?
“Por conta dos vários ataques que eu recebia quando mais nova, eu fui percebendo que eu não era exatamente uma menina nos olhos da sociedade… Eu me sentia desconfortável com o meu órgão genital, e sempre fazia de tudo para o esconder. Acho que a fazer a `técnica´ foi uma das únicas coisas que aprendi a fazer a sozinha (rsrsrs). Teve uma vez, quando eu tinha entre 8 ou 9 anos de idade, estava em um quarto com os meus primos e um tio, prestes a dormir, mas por estar em um ambiente só de homens seria muito normal andar pelo quarto só de cueca (ou algo parecido), mas quando eu me levantei para ir ao quarto de banho me embrulhei toda com o lençol, na tentativa deles não verem ou perceberem a minha genitália, aí o meu tio puxa o lençol de mim e diz: `mas por que escondes o teu pénis? Vela então se você não é coiso´. Eu apenas sorri para disfarçar!”.
A tua família sabia que tu te vias como uma menina Cis género?
“Eles não sabiam exatamente o que é, mas sabiam que eu era alguma coisa, menos o típico rapaz. Lembro-me que teve um dia em que a minha avó chegou em nossa casa e trouxe bonecas, e disse: `já que gostas tanto de brincar com bonecas trouxe essas aqui pra ti ´. Foi um dos dias mais felizes da minha vida! Mas depois disso ela teve uma briga com a minha mãe e, no de seguida já não voltei a ver as bonecas, eu lembro que só brinquei com elas provavelmente por uns 5/6 minutos.
Eu fui uma criança muito tímida e antissocial, e nas poucas tentativas de me encaixar no padrão de menino, eu saia com o meu primo para jogar futebol mas eu ficava sempre na baliza (rsrsrs). Ainda na fase escolar, eu parei de frequentar as aulas de educação física, porque quando eu corria os colegas falavam que eu parecia uma menina correndo e faziam comentários depreciativos, e eu passei a mentir por muito tempo que eu tinha problemas cardiovascular só para não participar das aulas de educação física (rsrsrs). O medo de ser humilhada e excluída me fez ser uma criança tímida!
Eu cresci em uma família muito machista, onde o modelo de ser homem e mulher estavam extremamente patentes, e, a primeira vez que eu presenciei um ato de homofobia por parte da minha família foi há alguns anos, quando estávamos a caminho da igreja e passou por nós um jovem Gay Afeminado, e um dos familiares comentou: `olha esse panina aí´, e se seguiu outros comentários, e eu falei dentro de mim `ouh estão a falar isso dele? Eu também sou`, (isso antes de me descobrir e assumir mulher Trans)”.
E tu expressavas feminilidade nessa altura?
“Expressava, era obvio! Eu gostava muito de escrever no diário, e teve uma vez que a minha mãe encontrou o meu diário onde estava escrito que eu gostava de um primo meu. E a minha mãe simplesmente me perguntou:` tu és Gay?´, eu demorei tanto para responder que chegou a cair uma lagrima em mim, mas acabei negando. Mas a partir daquele momento eu tive a certeza de que ela tinha certeza que eu gostava de meninos. Tanto que quando eu decidi me assumir, não foi surpreso para quase todos, até mesmo pelo meu pai, apesar da minha mãe ter negado que não sabia ou desconfiava, mas a minha família é extremamente homofóbica, e a única pessoa que me aceitou e respeitou foi o meu primo. que até pouco tempo era muito preconceituoso e, era a principal pessoa que eu achava que iria me rejeita, e, a segunda pessoa foi o meu avô. Eu digo sempre que o meu avô é um ser de alma pura, ele não tinha uma real noção do que eu sou, e mesmo os outros familiares terem tentado por coisas na cabeça dele contra mim, ele sempre me aceitou como eu sou. Ele é a única pessoa da minha família que eu sinto falta!”.
E a tua mãe e o teu pai?
“Eu me assumi aos 14 anos como Gay, eu não sabia sobre a Transexualidade, na minha mente Gay era a definição de mulher Trans. E a reação dos meus pais foi péssima, a minha mãe me submeteu a exorcismos para tentar me `curar´, eu tinha de ir sempre a igreja para tais terapias. Eu vivia com os meus avôs, depois a minha mãe me retirou do seio deles para viver com ela, e durante dois anos em casa da minha mãe a minha rotina era casa, escola e igreja, não podia fazer mais nada, se eu ficasse no portão de casa com uma amiga a conversar era problema, diziam que eu estava a fazer prostituição. De tanta opressão já cheguei a tentar me suicidar algumas vezes, mas sempre tinha algo não me permitia fazer.
Eu me sentia muito sozinha! A única pessoa LGBT que acompanhou um bocadinho esse período foi a Ariclenia Delgado, ela foi a única que esteve presente e que acompanhou tudo detalhadamente que, inclusive na época me convidou para ir viver em casa dela. Eu procurava conselhos de outros jovens LGBTQIAP+ que já eram assumidos, e eu lembro que em 2016 quando eu tive a oportunidade de conhecer mais pessoas LGBTs, eu procurava que elas me dessem conselhos por já terem se assumido por mais tempo que eu e, a única que me deu realmente bons conselhos foi a Rainer Costa, sou muito grata a ela e a Ariclenia Delgado pois elas me deram um grande suporte… A minha mãe me tornou em uma outra pessoa!”.
Por que a tua mãe?
“Pelas coisas que ela me submeteu! Não só a minha mãe mas toda minha família materna. Eu dizia sempre que `se a minha mãe continuar assim eu vou deixar de gostar dela´, mas eu não deixei de amar a minha mãe, continuo a amar ela, mas muita coisa mudou.
Eu vi que, como eu não tinha quase ninguém para me dar suporte durante aquele período conturbado, eu queria ser a pessoa que dá suporte aos outros. Percebi que a minha história é semelhante com a de varias outras pessoas LGBTQIAP+, pois eu sei como essa dor é horrível, eu sei como a família pode se tornar na pior cena da tua vida, e, sempre que posso dou um suporte em quem precisa através do meu movimento Mulheres Trans Independentes, e evito cometer os mesmos erros que as pessoas que eu pedi ajuda cometeram… Eu já sofri ameaças de morte por parte de um primo, e o mais doloroso no meio de tudo isso é que, segundo o mesmo, ele já tinha conversado com a minha mãe e a mesma concordou”.
Como foi o teu primeiro amor da adolescência?
“Na minha vida toda praticamente eu só tive amores não correspondidos, era muito difícil eu ter certeza que alguém gosta de mim. Até hoje sempre sinto que eu sou a pessoa que mais ama na história, pois quando eu estou em um relacionamento eu me jogo, eu me entrego e dou tudo de mim, mas depois eu sinto que a outra pessoa não faz o mesmo por mim.
O meu primeiro amor foi aos 15 anos, lembro que o meu primeiro beijo foi no mês de Agosto, o meu namorado era Bissexual, foi muito bom mas durou apenas uma semana (rsrsrs). Eu não sabia namorar, era muito nova, não dava a devida atenção no namorado e destratava ele (pensando que estava a agir bem), de seguida ele terminou comigo e nem me importei. Mas depois de uma semana comecei a sentir falta e cai em mim, comecei a correr atras dele mas ele alegava dizendo que já não queria mais. Em 2016 tive o meu segundo namorado que durou apenas duas semanas, um dia ele me enviou uma msg a dizer que estava apaixonado por uma outra pessoa, e por aí foi até amadurecer e começar a namorar com um jovem senhor americano em 2019. Esse o meu relacionamento mais intenso, ele me fazia se sentir bem e me ajudou a amar o meu próprio corpo porque, eu não gostava da minha aparência e nem do meu corpo, e ele apreciava o meu corpo Trans.
A minha falta de autoestima me fazia ver que talvez as pessoas não seriam capazes de me amar, eu me sentia muito insegura e via que as pessoas nunca iriam me amar da forma que eu sou. Ouvia comentários do tipo que para eu ter alguém do meu lado terei de ter muito dinheiro ou algo parecido”.
Por seres uma mulher Trans que está no processo de transição sentes/sentias que, isso dificulta a chance de encontrares alguém?
“Muito mesmo! O primeiro homem que realmente me enxergou como eu sou de verdade, foi o meu ultimo ex namorado, pois ele realmente me enxergava como uma mulher e me tratava como tal, como a mulher que eu sou. E o meu actual namorado também!”.
Como foi a tua experiencia jovens LGBTQIAP+ que inicialmente seriam as pessoas que teriam maior facilidade de se relacionar com uma mulher Trans?
“Eu percebi que muita gente da comunidade é confusa. Muitos dizem ser uma coisa que na realidade não são, muitos dizem serem capazes de se relacionar com corpos Trans quando na realidade não são, e, ainda carregam muitos padrões em suas mentes. Por exemplo, se o individuo for Bissexual vai namorar com um Gay padrão ou com uma mulher que com certeza não é uma mulher Trans. Não é uma reclamação, é uma constatação sobre uma realidade de um padrão excludente e opressor.
Se tu não fores uma mulher Trans que tenha passabilidade, que passe como uma mulher Cis, eles não vão se interessar por ti”.
Como é que tu te vês hoje?
“A forma que eu vivo e estou hoje é a forma que eu um dia almejei. Ter a minha independência! É uma coisa que eu pensava `quando chegara o dia que eu irei me livrar dos abusos psicológicos
?´, e hoje quando vejo a minha reviravolta, percebo que eu consegui, eu posso não ter muita coisa, mas eu tenho a minha paz de espirito que eu lutei para conseguir, não foi dado de mãos beijada. Eu agradeço muito os chefes do meu local de trabalho, pois não é fácil ver uma mulher Trans a trabalhar em um restaurante bem reconhecido, eu consegui estar em um sitio predominado por Heterossexuais Cis, eu venci essa batalha”.
Um conselho para as outras mulheres Trans e para comunidade LGBTQIAP+ no geral?
” Mulheres Trans, não parem nunca, continuem lutando pelos seus objetivos e sonhos. Não criem um modelo de mulher Cis, não precisam fazer isso, não precisam se submeter aos caprichos dos homens, idealizando o seu corpo só para chamar a atenção dos homens, façam a vossa voz sempre ser ouvida. O que faz de nós mulheres é a nossa alma, é um dever lutar por nós, é uma coisa que devemos fazer com a consciência tranquila, pensando no que estamos sujeitas a passar todos os dias. Nós que somos a minoria não devemos parar de lutar, batam de frente e que não se calem perante a injustiça, e, para você que está aí do outro lado, não desista da tua vida, talvez não seja agora mas tudo um dia vai passar. Peça ajuda!”.
[…] as mulheres Trans-, até as actuações eletrizantes e fervorosas de Keke Petrova, Dan Rendani e Alycia Varanda. Seria injusto não destacarmos as duas actuações de Alycia Varanda, cantando “Eu […]