A intersexualidade ainda é pouco compreendida na maior parte dos países africanos. Classificadas como mutilação genital, em Angola ainda é realizada cirurgias de remoção de um dos sexos em bebês intersexuais que, segundo comentários de jovens intersexuais, tais procedimentos cirúrgicos trazem consequências psicológicas, emocionais e físicas nas pessoas que são submetidas.
Para alguns funcionários da área da saúde em Angola, a intersexualidade é vista como uma malformação congénita, e isso é pregado até em zonas rurais. Não se tem conhecimento (por enquanto) sobre como a intersexualidade é encarada na maior parte das zonas rurais em Angola, mas se tem conhecimento de intervenções cirúrgicas em bebês que nascem intersexuais , nos hospitais municipais das províncias do país.
Como em Angola, países como Gabão e Quenia tratam a intersexualidade como uma situação de misticismos, e é encarada de diversas formas.
Zainab é uma parteira queniana que em 2014 se viu obrigada a fugir da sua aldeia para proteger a vida de duas crianças intersexuais que ela adotou.
O ano era 2012, Zainab realizava mais um porto como sempre, mas naquele dia a situação era diferente, o parto era difícil e o bebê que nasceu era uma criança intersexual.
“Quando olhei para saber se era menino ou menina, eu vi uma protusão – esse bebê tinha órgãos masculinos e femininos”, disse.
Sem saber como agir após notar a condição genital da criança, Zainab, que comummente anunciava com entusiasmo o sexo do bebê, limitou-se a simplesmente entregar a criança para a sua mãe… A mãe, exausta por conta do parto, ficou impressionada por conta do bebê ter dois sexos, já o pai, assim que viu a situação, sem hesitar, pediu que o bebê fosse morto.
“Ele me disse: ‘Não podemos levar esse bebê para casa. Queremos que ele seja morto’. Eu disse que a criança era uma criatura de Deus e que não poderia ser morta. Mas ele insistiu. Então respondi: ‘deixe o bebê comigo, eu o matarei para você’. Mas eu não o matei, eu fiquei com ele… Um ano depois, os pais ouviram dizer que o bebê estava vivo e vieram me ver. Disseram que eu jamais poderia revelar que o bebê era deles. Eu concordei e desde então crio a criança como se fosse minha. “acrescentou Zainab.
A posição de Zainab foi um ato de coragem, pois em várias xonas do Quénia, assim como na comunidade de Zainab, o nascimento de bebês intersexuais é visto como mau presságio, que acaba por trazer maldição para a família e vizinhos. Ao ficar com a criança, Zainab corria o risco de ser responsabilizada por qualquer infortúnio que atingisse a sua comunidade.
Dois anos depois, Zainab volta a realizar um parto onde o bebê era uma criança intersexual.
Apesar de não haver estatísticas confiáveis sobre pessoas intersexuais no Quénia, alguns médicos estimam que a incidência seja a mesma de outros países – aproximadamente 1,7% da população.
“Dessa vez, os pais não me pediram para matar a criança. A mãe estava sozinha e simplesmente fugiu, e me deixou com o bebê.”
Zainab novamente sentiu que devia ficar com a criança e a levou para casa. Apesar de sentir que está a fazer o certo, ao criar as duas crianças, o seu ato passou a impactar negativamente no seu relacionamento com o seu marido.
“Quando íamos ao lago pescar e a pescaria era ruim, ele colocava a culpa nas crianças. Ele disse que elas tinham lançado uma praga sobre nós e sugeriu que eu entregasse as crianças para que ele pudesse afogá-las no lago. Eu disse que jamais permitiria aquilo. Ele então ficou violento e começamos a brigar o tempo todo”, contou.
Diante dessa situação, onde as crianças poderiam ser mortas a qualquer momento, Zainab teve de deixar o marido e levar as crianças consigo.
“Foi uma decisão difícil porque financeiramente eu tinha uma situação confortável com meu marido, já tínhamos filhos criados e até netos. Mas ninguém consegue viver em um ambiente com tantas brigas e ameaças. Eu fui forçada a fugir.”
Nas zonas rurais do Quénia, cada vez mais, mulheres têm trocado os vilarejos por hospitais para darem a luz. O uso de parteiras tradicionais era regra, até pouco tempo, e havia uma norma tácita sobre como lidar com bebês intersexuais.
“Se um bebê intersexual nascia, automaticamente era visto como maldição e não poderia viver. Já era comum entre as parteiras – elas matavam as crianças e diziam às mães que o bebê havia nascido morto.” Seline Okiki, diretora do Ten Beloved Sisters, grupo de parteiras tradicionais do oeste do Quênia.
Havia um eufemismo, na língua luo, para como os bebês eram mortos. As parteiras diziam que elas haviam “quebrado a batata doce” – uma referência ao uso de uma batata doce dura para quebrar o cérebro frágil dos bebês.
“Os pais não tinham nenhum poder de decisão nesse assunto. A expectativa era que o bebê nem ficasse tanto tempo vivo a ponto de chorar”, afirmou Anjeline Naloh, secretária do Ten Beloved Sisters.
Para Zainab e os seus filhos adotivos, as novas intervenções do sistema de saúde queniano, para atender e cuidar as crianças intersexuais, estão um pouco distantes. Porem, Zainab comenta que as crianças estão saudáveis e e felizes.
A parteira ainda continua a realizar trabalhos de partos sempre que pode, mas actualmente a mesma vive do comércio de roupas e calçados. Quando perguntada sobre como estão as crianças, e, se tem algum arrependimento por ter alago a tudo pelos filhos adotivos, Zainab abre um sorriso de orgulho pelos filhos que tem e comenta.
“Nós nos alimentamos bem e consigo ver que elas são crianças normais. Nós conversamos, a mais velha ajuda com as coisas de casa e meu filho as trata como irmãos. Eles são minha família e é um milagre de Deus… eu deveria me livrar delas? Não, eu sou mãe delas. Elas são seres humanos e eu tenho que cuidar das criaturas de Deus”.
Fonte: BBC News Brasil