Por muito tempo, pessoas Trans em Angola foram apagadas do registro social da comunidade LGBTQIAP+. Não faz mais de 10 anos que passamos a ouvir com frequência a existência de pessoas Trans angolanas.
Neste mês de celebração ao “Orgulho LGBTQIAP+“, trouxemos 3 mulheres Trans de duas gerações diferentes para falarem do impacto da Covid-19 (e não só) nas pessoas Trans, e, os desafios que têm enfrentado nessa fase de confinamento social pela pandemia causada pela Covid-19.
Com a activista, artista plástica, modelo e apresentadora, Imanni Da Silva, juntamente com a modelo Doll Bårbie Queen e com a activista Mell. Criamos um universo em que elas sem tabus, puseram a mão na massa e posaram para fazer alguns cliques na lente da fotógrafa, feminista e activista, Rock. Na biblioteca do Arquivo De Identidade Angolana, para serem os rostos da nossa capa, edição de Junho em celebração ao mês do orgulho LGBTQIAP+…
A invisibilidade e marginalização das pessoas Trans dentro da comunidade LGBTQIAP+ e na sociedade em geral é preocupante, e, de extrema importância para todos nós acabarmos com esse estigma e discriminação que as pessoas Trans sofrem. Ao redor do mundo, a estimativa de vida das pessoas Trans é de apenas 35 anos. Isso se deve ao caminho de sobrevivência que a sociedade obriga as pessoas Trans a tomarem, e, consequentemente se tornarem vulneráveis às opressões e ataques (físicos e verbais) que a população em geral prática (ataques esses que infelizmente também é vivido dentro da comunidade LGBTQIAP+).
É importante, nós nos desconstruir e nos livrarmos de todos os preconceitos que nos foi incutido desde tenra idade, percebermos que LGBTQIAP+ não é GGGGG+ (Gay Gay Gay Gay e Gay). A desconstrução começa agora, começa de dentro de nós, começa apartir do momento que começamos a nos perguntar o porquê dos padrões de gênero? Porquê que devemos julgar quem não se identifica com o gênero que lhe foi imposto? Sendo que, gênero é uma construção social e quem devia definir elas somos nós mesmos por iniciativa própria, não terceiros. As particularidades de cada um de nós nos torna únicos e especiais, por isso temos sempre curiosidades de conhecer novas pessoas e novos lugares, para vivenciar novas experiências e nos formarmos socialmente. O padrão de beleza que hoje nós falamos que “é minha preferência apenas” é também uma construção social, nós não tivemos opção de decisão para definir o que é bonito para nós, e, assim nos espelhar. Tudo nos foi incutido obrigatoriamente sem percebermos.
Graças a sua experiência de vida, Imanni Da Silva nos põe a refletir sobre o impacto da pandemia na vida das pessoas Trans:
” Liberdade… Uma palavra que à nós diz muito e deve ser conquistada todos os dias mas, desta vez o sentimento de liberdade está em stand by.
Por conta do Covid-19 tivemos que adiar os planos e as vontades. Desde Março que o mundo inteiro está confinado e todas as nações buscam constantemente formas de combater o inimigo invisível. Chegou Junho, o més do orgulho LGBTQIAP+, e, ainda mergulhados numa maré de incertezas, vamos gradualmente dando passos para que voltemos à normalidade”
“Mas, o que muitos não sabem, ou preferem não saber, é que, para pessoas Trans a busca de transformar a palavra ” liberdade ” em sentimento faz parte da normalidade.Vivemos em um País que por questões culturais, sociais e acima de tudo religiosas não consegue encarar de frente e com uma mente livre de julgamentos tudo que foge do padrão e normas socialmente impostas e aceites”
” Já muito mudou, e até podemos e temos o direito de ser, estar e fazer. Mas se temos esse direito, então o porquê de corrermos sempre atrás da liberdade como se de uma borboleta veloz se tratasse?
Uma coisa é podermos ser, outra coisa é limitarem-nos até onde podemos chegar, ou pelo menos tentam. Ser transgénero é um desafio constante em todos os aspetos. Alguns poderão dizer que já se cansaram de ouvir a mesma coisa, nós mais ainda, de termos de fazer lembrar que somos seres humanos e como tal normais”
A activista, Mell, durante a fase do estado de emergência (em consequência a Covid-19) em Angola, sofreu uma agressão física por parte da polícia nacional, e, foi obrigada a passar a noite em uma esquadra. Fruto da Transfobia por parte da polícia… Seus direitos foram desrespeitados, sua liberdade de expressão foi violada por aqueles que deviam salvaguardar a sua integridade.
“Há quem nos atire a culpa por achar que da mesma forma que tivemos a “necessidade” de transitar de género poderíamos muito bem retroceder só para evitar os constrangimentos. Sabemos muito bem que maior é o sofrimento de viver preso(a) em um corpo com o qual não nos identificamos, e, quando se toma a decisão sabemos que vem a factura com o que temos de pagar, desde enfrentar a família, os amigos, a sociedade, acesso à educação, saúde, emprego, carreira e por aí vai. É bem verdade, que quando se quer se consegue, mas nem todo mundo tem a força interior pra dar murro em ponta de faca sem sentir dor e transformar a ponta de metal em borracha“.
“A maior parte da comunidade LGBTIQ+ em Angola faz parte da camada mais necessitada e as pessoas transgénero têm mais este peso às costas. Sabemos que o estigma e a discriminação causam traumas e auto exclusão. Quando por muito tempo nos habituamos de que algo nos será negado, deixamos de insistir, quando nos habituamos de que ter acesso à algo que é nosso por direito nos é negado deixamos de lá ir e tentar. Eis o que acontece em alguns espaços relacionados à saúde, educação e segurança pública, onde em muitos casos quem nos deveria proteger é o perpetuador da violência. ferindo corpos e almas, contribuindo para mais vidas manchadas pelo descaso e desrespeito pelo direito simplesmente de ser homem ou mulher. Violência que muitos enfrentam dentro dos seus lares onde, a incompreensão por parte de familiares esmagam os sonhos e o pouco que resta da autoestima e amor próprio, em especial nesta faze de confinamento obrigatório“
“Estamos na fase em que enfrentamos o inimigo invisível, mas, temos socialmente uma comunidade que durante o dia, tal como os vampiros, se esconde para não poder ser reduzida às cinzas. Poucos desconhecem a tortura psicológica de temer sair à rua para não lhe apontarem o dedo, e, ferir os ouvidos com ofensas pelo simples facto de existir”
“O mercado de trabalho é um dos maiores desafios, pois, para muitos empregadores dar a oportunidade à uma pessoa transgénero é mais confuso e desafiador do que montar um puzzle de 1000 peças. Muitas mulheres Trans, ou melhor, a maioria, vêm o trabalho de sexo como uma saída mais viável para a sua sobrevivência. Sem esquecer que, o trabalho de sexo é “trabalho”, mas nem todo mundo deseja faze-lo, e consequentemente existem os riscos tanto a nível da integridade física tal como da saúde“.
“Onde ficam as manas e os manos que querem ser professores, médicos, secretários, rececionistas, balconistas, prestadores de serviços, assistentes de vendas?As vezes nem para limpar o chão servimos.
Algumas que reconhecem as suas habilidades criam seus próprios negócios e destemidas criam, produzem e fornecem. Muitos de nós que temos uma veia artística nos safamos por um triz, e mesmo que não pareça, também temos de cuspir pra fora alguns sapos e lutar com dragões como nos contos de fadas, só que na vida real a espada é afiada. Mas a gente a quebra“
“Sendo modelo Trans, já passei por muita coisa feia. Já fui burlada por alguns fazedores de moda, tive que pagar alguns valores para poder participar em Determinados eventos. Já fui boicotada em um concurso de moda em que, segundo a votação popular eu devia sair como a vencedora entre as mulheres. Mas por não ser cis gênero fui boicotada, e no final, o meu nome nem saiu na lista das mais votadas”
“Estilista se recusam em me vestir, dizendo que não há lógica em exibir a sua coleção em uma modelo Trans… Mas a resiliência faz parte de mim, e, prometi para mim mesma nunca desistir dos meus sonhos/objetivos”- Doll Bårbie Queen
“Não estou aqui com vitimismo, mas sim como uma activa contribuinte para que, o nosso futuro em Angola seja mais risonho, e que, apesar da visibilidade e estabilidade social faz questão de expor a realidade nua e crua que se empurra por debaixo do tapete. Quanto à um futuro risonho, não é impossível, mas, tudo passa por vários desafios começando pelo empoderamento da própria comunidade, fortalecendo-a com as informações necessárias para que a mesma se compreenda e conheça os seus direitos e possa correr atrás dos mesmos. Tendo as ferramentas para que possa realizar seus sonhos sem medos, limitações e obstáculos.Reeducar e sensibilizar toda uma sociedade, sobre identidade de género e orientação sexual, e, desconstruir ideologias que por ainda hoje assombram nossa existência“.
“Estes e muitos outros, tem sido o trabalho dos activistas tal como das organizações que trabalham em prol dos direitos LGBTQIAP+, como a Associação Íris Angola e a AIA (Arquivo De Identidade Angolano) que, trabalham em prol das pessoas LGBTQIAP+“.
“Em 2019, o Movimento EU SOU TRANS Angola, surgiu para dar voz e visibilidade à comunidade Transgenero, e, trabalhar em prol da defesa dos seus direitos junto com as instituições a nível governamental e não só. O movimento, além de colaborar com as organizações acima mencionadas, é igualmente um Guarda-Chuva para outros grupos como o Movimento T (de Homens-trans) e “Mulheres do Coração” (de Mulheres-trans). São muitas as mudanças que necessitamos à nível legislativo. Que legalmente possamos registar os nossos nomes sociais e o gênero com o qual nos identificamos, e assim, os nossos documentos pessoais apresentarem as pessoas que realmente somos… Que a transfobia seja punível por lei, e que tenhamos proteção e apoio sem burocracias e constrangimentos. Que clínicas e profissionais especializados em transição de género possam legalmente trabalhar em Angola, permitindo à comunidade um acompanhamento seguro à altura das suas necessidades.”
” Entre um desafio e outro, vamos gradualmente dando passos largos para que o nosso trabalho alcance e ajude o maior número possível de pessoas.
A actual realidade que à todxs nós desafia, nos faz refletir sobre o futuro, não só do mundo mas das nossas vidas, e para além de nos convidar a abraçar uma visão e atitude mais humanistas, nos injecta igualmente a força de vontade, e, nos lembra de que juntos somos mais fortes e capazes de fazer a diferença de forma positiva. Onde um único sonho de tornar a palavra liberdade em verdadeiro sentimento seja vivido e usufruído por todos, todas e todxs.
Que neste mês de Junho, tal como o resto do ano, todos nós possamos erguer as nossas cores e caminhar sempre com ORGULHO“– Imanni Da Silva, para a Queer People.
Resiliência, empoderamento e coragem, é o que todos nós devemos ter para defender as nossas particularidades, seja a nossa identidade de gênero, orientação sexual ou performance de gênero. Celebremos todxs o mês do Orgulho LGBTQIAP+!
– David Kanga