Ao fazer uma rápida pesquisa no Google sobre “Intersexualidade em Angola”, percebemos uma drástica ausência de conteúdos sobre o mesmo nos portais de informação angolanos.
Ao perceber isso, surge alguns questionamentos: “Afinal, em Angola existem pessoas intersexuais ou não? Como podemos falar sobre algo que a sociedade desconhece? Pelo menos o termo “Intersexualidade”.
Desde o surgimento das iniciativas de defesa dos direitos das pessoas LGBTQIAP+ em Angola, questionamentos sobre a intersexualidade, e a sua representatividade no movimento, tem sido discutidos com euforia pelos activistas local.
Silva Mateus popularmente conhecido por Boomer Mateus, é a primeira pessoa intersexual em Angola a liderar uma organização Queer de defesa pelos direitos das pessoas intersexuais no país.
“Uma pessoa intersexo pode, ao nascer, ser-lhe atribuído o género masculino ou feminino com base em algumas características biológicas, mas pode apresentar outras características, tanto internas como externas, que não correspondem inteiramente ao género atribuído à nascença”
Com a aprovação da primeira resolução para os direitos das pessoas intersexuais pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Abril do ano corrente, surgiu a necessidade de se saber qual o posicionamento do Ministério da Saúde angolano acerca das pessoas intersexuais no país. Pois, em Angola, vários são os relatos de bebês que nascem com características intersexuais que acabam por sofrer mutilação genital por falta de conhecimento dos médicos e dos próprios pais acerca da intersexualidade.
“As crianças nascidas com variações em suas características sexuais – às vezes, chamadas de variações intersexo – são muitas vezes submetidas a cirurgias “normalizadoras” que são irreversíveis, arriscadas e medicamente desnecessárias” – Human Rights Watch
Silva Mateus, popularmente conhecido como Boomer Mateus, residente em Luanda, é um activista de defesa pelos direitos das pessoas intrsexuais em Angola, fundador e gestor financeiro da organização Direitos Humanos Intersexo Angolano (DHIAngolano). Desde muito cedo, Silva tem sentido o impacto do desconhecimento do sistema de saúde angolano acerca da intersexualidade.
“por experiência pessoal, e como uma pessoa intersexo, nota-se que nos hospitais não há muita informação sobre a intersexualidade, não sabem como lidar com pessoas intersexuais“
Em conversa com a Queer People, Silva conversou acerca dos desafios que tem enfrentado no sistema angolano por ser uma pessoa intersexual, como viu a sua percepção sobre o seu verdadeiro eu a sofrer uma traumática mudança forçada, e, como tem usado o seu trabalho na DHIAngolano para socorrer outras pessoas intersexo que se sentem excluídas pela sociedade por serem quem são.
O que é a Intersexualidade?
Intersexualidade refere-se a variações que acontecem nas características sexuais, como nos cromossomos, nas gônadas e nos hormônios que faz com que o corpo ou formato da genitália e alguns aspectos sexuais, não se encaixem naquilo que é esperado de um corpo macho ou fêmea.
Uma pessoa intersexo pode, ao nascer, ser-lhe atribuído o género masculino ou feminino com base em algumas características biológicas, mas pode apresentar outras características, tanto internas como externas, que não correspondem inteiramente ao género atribuído à nascença.
Como foi o momento em que percebeste que eras um indivíduo intersexual?
Eu cresci como um menino “normal”, fui registado no género ou sexo masculino e fui crescendo como qualquer outro menino. Fomos crescendo e tudo aquilo era normal, mas alguns aspectos começaram a ser notados, principalmente na fase da adolescência.
Passei a notar que as vozes dos outros meninos se tornavam mais grossas, os seus pelos cresciam e os seus pénis cresciam… Nenhum deles crescia peitos como eu. Passei a ver-me diferente de outros meninos, e eu falei com a minha mãe que, quando vou tomar banho com os outros meninos, noto que o meu corpo é diferente do deles – mesmo tendo a mesma idade -, mas a minha mãe disse: “Não, está tudo bem (risos)! As pessoas são diferentes, talvez você é diferente, mas está tudo bem! Não tem nenhum problema”.
Fui crescendo, e chegou uma fase em que os peitos realmente tornaram-se um constrangimento, porque eles ficaram maiores e a minha voz era muito fina (risos)! Aquilo começou a ser constrangedor… Passei realmente a esconder-me, se tivesse que usar t-shirts tinha de usar duas t-shirts e mais alguma coisa para cobrir. Imagina com o sol do nosso país (risos)!
Eu usava volumes para não se notar que o meu pénis era pequeno, até na escola tinha que me montar para não sofrer bullying… Acredito que a partir dali as coisas começaram a ficar um pouco mais difícil, porque dentro de casa era muito tranquilo, porque a minha família tinha aquela preocupação. A minha família fazia vários questionamentos por conta da preocupação que tinham: “és um menino diferente! És um homem mas tens xuxa, como é que as pessoas vão te tratar? Como vai ser a tua vida? Será que haverá uma mulher que te vai aceitar algum dia, sendo tu um homem com pénis pequeno e que tem xuxa? Como vai ser tudo isso? Esses questionamentos também passaram a me preocupar.
Chegamos de ir para o hospital militar e foi a primeira vez que fizemos uma consulta especifica. Na altura, os médicos cubanos disseram que eu era uma pessoa hermafrodita e, que eram casos que acontecem. Sugeriram que esperássemos quando eu tivesse uma idade mais avançada para ver qual seria o procedimento que deviam seguir, mas, quando a família tem uma crença e já tem em mente que isso é feitiço, tem de ser tratado como acreditam, mesmo ouvindo que há possibilidade, que eu possa ser homem…
E sobre isso, como é que o nosso sistema de saúde lida com as pessoas intersexuais?
Olha, é algo que temos que sentar e conversar com as instituições de saúde para termos uma resposta clara sobre isso, ainda não tivemos oportunidade de sentar, mas por experiência pessoal, e como uma pessoa intersexual, nota-se que nos hospitais não há muita informação sobre a intersexualidade, não sabem como lidar com pessoas intersexuais…
E por conta disso, chegamos de ir para o Congo, onde, infelizmente, passei por uma mutilação genital, onde me foi removido os órgãos masculinos tanto externos como internos. Posteriormente me foi dito que a minha vida iria melhorar: “agora que já tens um género atribuído, que é feminino, vamos te ensinar como ser uma mulher, então, a tua vida vai melhorar´´. Voltamos para Angola, e novamente me foi dito que a minha vida iria melhorar e, que eu só tinha que seguir tudo o que iriam me ensinar sobre como viver como uma mulher.
Passei a sentir-me mais desconfortável, porque eu me sentia obrigado a viver um papel social em que não me identificava. Nem os médicos tiveram aquela amabilidade de perguntar se eu queria permanecer no género masculino ou queria fazer uma transição para o género feminino.
Então, foi um procedimento sem informação nenhuma… Eu, não recebi nenhuma informação que eu tinha essa possibilidade de escolha, eu podia escolher se gostaria de continuar com o género que me foi atribuído ao nascimento, e posteriormente, começar uma terapia hormonal para que o meu físico fosse de acordo com o género em que eu me identifico.
Foi um processo muito difícil, pois, de tanta pressão que vivia para poder ser mulher, entrei em depressão. Cheguei ao ponto de dizer que a minha vida já não fazia sentido para viver. Como poderia viver dependendo do desejo de outras pessoas?!
Eu cheguei quase a cometer suicídio! Mas, acredito que graças à Deus e ao destino, eu conheci a Relíquia, que se tornou em minha madrinha – foi em uma noite que liguei para ela e estava junto a praia para me jogar-, ela dirigiu-me algumas palavras que me fez refletir que, existe alguém que não é do meu sangue, mas importa-se comigo e quer que eu viva. Ela demonstrou que eu sou alguém importante na vida dela, e pesar dessa toda pressão que eu sentia, valia a pena viver… Desde aquele dia, tomei um rumo diferente, de lá, fui procurando pela comunidade, passar a participar em rodas de conversas e, foi em uma das rodas de conversas que o Arquivo de Identidade Angolano (AIA) realizou, na altura a directora era Pamina, onde falou-se sobre a intersexualidade, género, identidade de género e orientação sexual, que então, essas informações foram tão valiosas para mim.
Qual é a diferença que existe entre intersexualidade e transexualidade?
Quando falamos sobre a intersexualidade, estamos a falar sobre variações que acontecem no sexo biológico de uma pessoa, ao que a transexualidade se refere a transição de género de uma pessoa. Por exemplo, uma pessoa do género feminino que quando cresce passar a se identificar com o género oposto daquele que lhe foi atribuída, então, é uma pessoa Trans, porque a sua identidade é oposto daquele foi atribuída ao nascimento.
Em algum momento chegaste de achar que és uma pessoa Trans?
Olha, cheguei a pensar nisso, porque quando eu nasci me atribuíram o género masculino e, submeteram-me a várias cirurgias para estar no género feminino, seria praticamente uma mulher Trans (risos)!
Mas Trans é uma pessoa que transicionou do género que lhe foi atribuído ao nascimento para o género oposto. Porque se eu dizer que sou trans estaria firmar o processo da cirurgia que me foi feita e, depois de entender o conceito sobre o que é ser Trans, percebi que não é bem aí que me enquadro.
O que é a DHIAngolano?
A DHIAngolano é uma organização sem fins lucrativos que surgiu para todas as pessoas que nasceram com variações nas características sexuais, ou pessoas intersexo e as famílias. Porque, notamos que são casos que não só afecta as pessoas intersexo, mas algumas famílias também saem afectadas, porque existem pessoas intersexuais que são adultas, já têm famílias, mas que ainda têm dificuldades e desafios por serem quem são… Nós surgimos para ajudar, ouvir e levar essas questões aos órgãos competentes, para poderem dar uma resposta aos desafios que as pessoas intersexuais passam em Angola.
A quanto tempo a organização existe?
Existimos há 4 meses, é muito recente…
Quantos membros há na vossa organização?
Actualmente, somos 10 membros…
Todos os membros da organização são intersexuais?
Não, temos um membro que não é intersexual.
As cirurgias que são feitas nos bebês que nascem intersexuais provocam algumas consequências?
Tendo em conta que uma pessoa vai crescer, vai ser um indivíduo para a sociedade, provavelmente pode não se identificar com a escolha do sexo que os médicos e a família fizeram, isso poderá afetar a vida dessa pessoa lá mais para frente…Também, tem a questão psicológica, e são cirurgias irreversíveis.
Imagina que a pessoa teria possibilidade de ser um pai, crescer e ter filhos, mas por facto de sofrer essa cirurgia na infância, a pessoa cresce impossibilitada de viver isso. Então, o mais adequado é deixar que essa pessoa cresça e decida quem a pessoa quer ser. Praticamente, pessoa intersexual nem sempre nasce com os dois sexos, por exemplo, uma pessoa do sexo feminino pode nascer com variações que se encontram nas características do sexo masculino.
Como os médicos angolanos caracterizam pessoas intersexo?
Infelizmente, ainda caracterizam como uma doença.
O nosso país não reconhece, não temos casos realmente de cirurgias de forma concreta, é algo que temos que pesquisar, falarmos com os profissionais de saúde para podermos identificar qual é o procedimento que fazem para identificar uma criança intersexo.
Há dia, falei com um médico do Hospital Geral do Kilamba Kiaxi, onde faço sempre as minhas injecções e disse-me que recebem casos de crianças intersexuais, mas que não são registadas.
O problema é a falta de reconhecimento de pessoas intersexuais e a de informação sobre a intersexualidade entre os técnicos de saúde, faz com que simplesmente passem a ver os corpos intersexuais numa questão médica e não verem na subjectividade de serem seres humanos…
A intersexualidade ainda é vista como uma anomalia/malformação congénita em varias sociedades a redor do mundo, em comunidades rurais, o nascimento de bebés intersexuais pode ser visto como um mau presságio. É importante que os nossos governos e sistemas de saúde, possam reconhecer a existência as aflições das pessoas intersexuais, afim de garantir a sua participação na sociedade, dar respostas as suas necessidades, e, combater a desinformação sobre os mesmos.