
O Instituto Nacional de Estatística (INE), em parceria com o PNUD e a OIT, inquiriu mais de 11 mil trabalhadores informais em Luanda entre Junho e Setembro de 2022. O estudo apontou que a pandemia da COVID-19 agravou significativamente a situação da economia informal, afectando sobretudo populações vulneráveis mas, deixando para atrás pessoas LGBTQIAP+, frequentemente excluídas de políticas públicas de empregabilidade e inclusão social.
Enquanto isso, Olívia Faria dos Santos, mulher trans nascida em Benguela, transforma cada dia de venda na praça numa afirmação de identidade e sobrevivência. Em entrevista exclusiva à Queer People, ela partilha a sua jornada de resistência, desafios e sonhos.
Como surgiu a tua entrada no mercado informal?
No princípio, eu tinha uma vida estável em Benguela com os meus pais. Conheci um rapaz pela internet que prometeu ajudar-me aqui em Luanda. Ele pagou a passagem, mas quando cheguei, hospedou-me por dois dias numa pensão e depois desapareceu. Fiquei sem ter onde morar. Vivi nas ruas até que conheci “O Cúbico”, onde morei por dois anos. Durante esse tempo, cheguei a fazer trabalho de sexo para sobreviver.
Num certo dia, fui acusada falsamente de roubo por um cliente. Isso fez-me repensar a vida. Com o pouco que ganhei, comprei uma caixa de salsicha e comecei a fritar na porta de casa. A partir daí, fui crescendo, vendendo outros produtos e recuperei a dignidade que me estava a faltar. Hoje, sobrevivo do meu pequeno negócio. Já não faço trabalho de sexo nem ando pelas ruas.
O teu negócio tem sido sustentável?
De certo modo, sim. Ajuda bastante nas despesas diárias. Não posso contar só com ele, mas consigo pagar a renda, comprar comida e, de vez em quando, mandar algo para a minha mãe. Jogo kixiquila para reforçar na poupança — é uma técnica que ajuda muito a quem vende.
E quando os preços sobem no armazém?
Adapto-me. Se não conseguir comprar uma embalagem inteira, divido com outras vendedoras. O importante é manter a banca abastecida.

Já pensaste em mudar de negócio?
Ainda não. Este negócio foi herdado da minha mãe. É algo de que gosto e com o qual me habituei. Se conseguir um emprego fixo, posso largá-lo. Mas, enquanto isso não acontecer, sigo com ele.
Tiveste alguma experiência a tentar expandir o teu negócio?
Sim, chamei duas moças do bairro e entreguei-lhes produtos para vender. Mas fui traída. Uma levou os bolinhos e desapareceu com o dinheiro, a outra sumiu com seis cartões de ovos. Isso deixou-me traumatizada. Hoje prefiro trabalhar sozinha.
Como é ser mulher trans, vendedora e moradora da periferia?
No início, sofri muito. As colegas faziam piadas, diziam coisas ofensivas. Passei a usar auriculares para evitar ouvir. Com o tempo, habituaram-se a mim. Algumas até vieram pedir desculpas. Na verdade, muitas fingem simpatia. Mas Deus é quem julga.
Sempre digo às outras manas: saiam das ruas. Façam algo, qualquer coisa. Não há nenhum documento que legalize o trabalho de sexo como profissão. Há outras maneiras de viver, mesmo com pouco.
Poderias partilhar mais sobre o teu dia-a-dia como vendedora informal?
Vendo na zona onde moro. Começo cedo, preparo tudo sozinha e vou à luta. Já fui expulsa de mercados, já sofri humilhações por causa da minha identidade de género. No mercado do Kifangondo, por exemplo, fui enxotada pela fiscalização porque outras vendedoras diziam que eu não era mulher. Tive que ir embora com tudo o que tinha comprado para vender, e foi muito doloroso. Mesmo assim, não desisti.
Conheces outras mulheres trans que também vendem?
Só conheço duas. Uma vende no Kikolo e outra na zona da Cuca. A do Kikolo vende sacos; a da Cuca vendia chinelas.
Quais são os teus sonhos para o futuro?
Gostava de montar uma pastelaria. Tenho formação nessa área. O problema é ter espaço, materiais e pessoas de confiança. Sonho em concretizar isso.
E se tivesses a oportunidade de fazer faculdade, que curso escolherias?
Análises Clínicas. Quero estudar Análises Clínicas, porque gosto muito da área da saúde. Acredito que com mais apoio posso realizar esses sonhos. Só preciso de uma oportunidade, de alguém que acredite em mim. Também quero ajudar outras manas trans a saírem das ruas, a criarem seus próprios caminhos.
Já foste vítima de agressão ou violência enquanto vendedora?
Felizmente, não. Apenas insultos. Mas reajo com firmeza. Mostro uma cara séria e a pessoa baixa a cabeça. Já houve quem me chamasse de “mana”. Com o tempo, algumas colegas aprenderam a respeitar-me.
O preconceito e a transfobia continuam a fazer parte do teu quotidiano?
Infelizmente, sim. Há muita hipocrisia. No mercado e na rua sou insultada, discriminada, e às vezes, até agredida verbalmente. É cansativo. E o mais difícil é não ter apoio. Sinto que não somos vistas como cidadãs com direitos. Muitas vezes, quem devia proteger-nos fecha os olhos. Já pensei em desistir, mas tenho força e fé de que as coisas podem mudar.
Que avaliação fazes da situação económica actual do país?
Péssima. O governo não faz nada por nós. O presidente não sente fome, não anda a pé, então não entende o povo. Os preços sobem todos os dias. Vemos crianças a comer no lixo, pessoas a matarem-se por um prato de comida. O povo sofre e, em vez de nos apoiarem, os fiscais ainda nos expulsam das ruas. Dizem que vão construir mercados, mas nunca vemos nada.
Já tentaste conseguir uma banca num mercado formal?
Sim. No mercado do Kifangondo. Mas, por ser mulher trans, fui discriminada. A direcção disse que eu era uma má influência. Expulsaram-me. Fui à esquadra, mas disseram-me que nada podiam fazer.
Quais os teus maiores desafios hoje como vendedora?
Fazer crescer o meu negócio e dar-lhe mais visibilidade. Quero que as pessoas vejam o meu trabalho com respeito.
És candidata a Miss Trans Angola 2025. O que significa para ti essa participação?
Significa muito. É um espaço de visibilidade, de afirmação da nossa existência e da nossa beleza. Quero mostrar que uma mulher trans pode ser tudo o que quiser: bela, inteligente, empreendedora. Estar nesse concurso é uma forma de inspirar outras pessoas da comunidade a não desistirem.
Que mensagem deixas ao governo para apoiar mulheres trans no mercado informal?
Que olhe para nós com humanidade. Somos seres humanos como qualquer outro e merecemos ter oportunidades de trabalho digno. Muitas de nós têm o ensino médio concluído, mas somos rejeitadas por sermos quem somos. O governo precisa criar políticas inclusivas para a nossa comunidade.
E para as pessoas LGBTQIAP+ que queiram empreender?
Manas e manos, tentem! Comecem com pouco. Eu comecei com uma caixa de salsicha e hoje sustento-me. Saiam das ruas, façam formações, aprendam algo. Quem tem família que rejeita, precisa de ser independente. A nossa comunidade é pequena — precisamos unir-nos, apoiar-nos e crescer juntos. A vida é difícil, mas quando temos coragem, foco e fé, conseguimos dar a volta por cima.
A história de Olívia Faria dos Santos é um testemunho inspirador de força, resiliência e humanidade. Numa sociedade onde ser trans ainda é um acto de coragem, ela ergue-se como exemplo de superação e de que é possível construir dignidade, mesmo nas margens da economia formal.