Quando se fala da comunidade LGBTQIAP+ em Angola, automaticamente nos vem em mente activistas, cantores, bailarinos, influencers, médicos e enfermeiros LGBTQIAP+. Já mais, em momento algum iriamos imaginar ver/ter uma figura politicamente exposta em Angola, assumir abertamente ser Homossexual e estar em um casamento Homoafetivo.
“Me casei com o Cristophe Degrauwe em 2003, na minha aldeia com a presença dos nossos pais. Foi na véspera em que o casamento Homoafetivo passou a ser legal no nosso país, mas antes disso, a união de factos entre casais homoafetivos já era reconhecido no nosso país”
Pela primeira vez em Angola, e, com exclusividade para a Queer People, o senhor Embaixador, Jozef Smets, embaixador do Reino da Bélgica em Angola desde 2019, concedeu uma entrevista para nós, onde compartilhou um pouco mais da sua vida profissional e pessoal, as experiências que teve enquanto trabalhou em outras países como Embaixador, da sua infância, do seu casamento com o senhor Cristophe Degrauwe, e, alguns desafios que teve de superar enquanto uma figura abertamente Homossexual e politica.
Gostaríamos que pudesse se apresentar para os nossos leitores…
“Olá! Eu sou o Jozef Smets, atual embaixador do Reino da Bélgica em Angola desde 2019. Já trabalhei para a diplomacia da Bélgica em 7 países, desses 7, 4 foram como Embaixador. Aprendi a falar português no Brasil, onde exerci a função de Embaixador da Bélgica naquele país… A minha experiência no Brasil é muito interessante, pois foi nesse período que Cristophe e eu apadrinhamos um casamento colectivo de 8 casais Homoafetivos, em que 6 dos casais eram casais de Lésbicas.
Me casei com o Cristophe Degrauwe em 2003, na minha aldeia, com a presença dos nossos pais,e o Administrador Municipal da minha aldeia foi o cerimonialista do nosso casamento. Foi na véspera em que o casamento Homoafetivo passou a ser legal no nosso país, mas antes disso, a união de factos entre casais homoafetivos já era reconhecido no nosso país.”
Quando o senhor Embaixador conheceu o senhor Cristophe?
“Muito tempo atrás rsrsrs, agora vás me fazer calcular (rsrsrs)… Nós estamos juntos desde 1981. Você ainda não era nascido, pois não (rsrsrs)?
– Não não (rsrsrs), eu sou do final dos anos 90 (rsrsrs)
“Começamos em 1981, e, como jovem casal participamos de algumas das primeiras manifestações do Orgulho LGBT, sendo que na altura as paradas aconteciam nas ruas menos importantes da capital, Bruxelas. Naquela altura, o administrador da capital disse que poderíamos nos manifestar mas não no centro da cidade.
E agora, depois de mais de 20 anos, a parada do Orgulho LGBTQIAP+ se tornou em um dos eventos mais importantes da capital, nas melhores avenidas, com a participação de ministros, ou seja, quase toda a classe política actualmente participa da parada do Orgulho LGBTQIAP+, desde os partidos mais conservadores até aos mais liberais.
Hoje as paradas do Orgulho LGBTQIAP+ se tornaram eventos enormes, gerando muita receita para as marcas envolvidas devido a publicidade das mesmas, talvez com o teor menos politico que de antes. Pois, naquela altura do início, as manifestações eram mais para exigir direitos e mudanças politicas, novas leis específicas, direito ao casamento, acesso a saúde, e hoje obtivemos quase tudo, mas com certeza ainda falta algumas coisas… Eu me lembro que no início, na nossa primeira manifestação, teve apenas a participação de aproximadamente 200 pessoas. Eu e o Cristophe ainda temos algumas fotos desse momento, nós eramos apenas dois jovens estudantes, e o desfile era em uma pequena rua fora do centro da cidade, sem muita visibilidade. Hoje temos algumas leis anti-discriminação de proteção as pessoas LGBTQIAP+.”
Desde o seu surgimento no início dos anos 80, o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH/SIDA) já matou mais de 35 milhões de pessoas ao redor do mundo. Hoje, graças aos avanços e aprimoramentos técnicos da indústria farmacêutica, já se tem medicamentos mais eficazes para o tratamento de pessoas vivendo com o vírus, e continuam com o desenvolvimento de vacinas para imunizar as pessoas contra o vírus. Mas, continua sendo importante conscientizar as pessoas a continuarem a usar os preservativos para se protegerem contra o vírus e outras ITS.
Como foi o início dos anos 80 na comunidade LGBT Belga com o início do surgimento do VIH/SIDA?
“Foi muito assustador… Acho que todos nós tivemos muita chance de sermos atingidos pelo vírus, porque no início as pessoas não sabiam como poderiam se proteger, e na minha opinião, em países em que a homossexualidade é taxada como algo negativo, a tendência é que o contacto sexual entre os indivíduos desses países aconteça de forma mais escondida, entre bares e clubes, e o risco é maior de sofrerem contaminação por VIH/SIDA, em comparação com países que aceitam e respeitam a Homossexualidade, pois, o casal Homossexual desse país pode arrendar uma casa, terá as condições necessárias para sobreviver, e os contactos são mais normais.
Mas em 1984 eu me lembro muito bem, me lembro de receber notícias de algumas pessoas, não muito próximas de mim, que perderam as suas vidas por conta do VIH/SIDA, e assistimos a cerimónias de lembranças de pessoas falecidas por conta também do VIH/SIDA, também, de algumas ações para perguntar o quê que se deve fazer mais para informar ao povo e proteger.
A nossa sociedade reagiu muito bem nessa fase, foram criadas pontos de constantes ajudas e informações, e apesar de ter sido um momento muito assustador, a sociedade reagiu com eficácia. No início foi aquele pânico geral, mas depois conseguimos lidar com a situação.
Mas infelizmente perdemos muitas pessoas por falta de informação, por falta de aceitação da Homossexualidade, e talvez também por alguns manterem comportamentos de risco. Talvez esse comportamento de risco que alguns tiveram foi como um refúgio contra sociedade que não os aceitava, e então optaram para o sexo desprotegido como um ponto de saída… Não os posso julgar por tais comportamentos!”
Quais foram algumas das dificuldades que o senhor embaixador encontrou aqui em Angola (e não só) por estares em um casamento Homoafetivo?
“Não vi problema por estar em um casamento Homoafetivo em Angola. Eu percebi que aqui, na classe política, tem uma forma de respeito ou descrição sobre a sua vida privada… Eu recebo muitas pessoas oficiais, deputados, representantes de partidos políticos, empresários, e eu nunca vou perguntar como vai a sua esposa, e eles também. Há uma discrição, e isso faz parte da mentalidade das pessoas e facilita as coisas… Ainda hoje recebi 4 políticos, e em um momento perguntei se eles têm filhos pois gostaria de os oferecer alguns presentes, e eles disseram que sim, que têm. Mas, a pergunta nunca é se sou casado, se tenho uma esposa ou esposo (rsrsrs).
Eu acredito que as pessoas sabem, e os mesmos respeitam, ou não dizem nada. Aqui nós podemos trabalhar bem, sem algum tipo de problemas, e de alguma forma esse respeito e proteção é devido ao nosso estatuto, eu sei. Mas, de alguma forma temos também feito algumas coisas para acompanhar a comunidade LGBTQIAP+ Angolana.
Foi por isso que no dia 17 de Maio realizamos o Cocktail de celebração do Dia Internacional Contra a LGBTfobia, e eu fiquei muito feliz com a presença de todos vocês representantes da sociedade civil e, também da Secretária de Estado dos Direitos Humanos e Cidadania, Ana Celeste, que desde o início disse que estaria presente e iria fazer um discurso (e o fez)… É importante que possamos criar esses ambientes em que as pessoas possam se encontrar e elas mesmas falarem dos seus desafios, e, eu acredito que as outras Embaixadas também fazem isso.
Nesse momento recebemos um oficial do nosso país que está cá para uma visita, iremos organizar um encontra com os membros da sociedade civil, e para mim é muito normal que dentre os representantes da sociedade civil tenha pelo menos 2 representantes de algumas organizações LGBT.”
Qual foi o país em que tiveram maior facilidade para trabalhar como um casal Homoafetivo?
“Brasil! Nós trabalhamos no Brasil antes de virmos para Angola. É um país que tem muita abertura, que está evoluindo bem, a nível LGBT tem muitos direitos. Então, para nós foi o país mais fácil em que pudemos trabalhar como um casal Homoafetivo, e para apresentar Cristophe como meu marido em todos os ambientes… Mas aqui também temos abertura e fazemos o nosso trabalho.
Cristophe tem uma grande actuação no campo cultural, ele está sempre a trabalhar e lançar muitas coisas, e, até agora só obtivemos experiências positivas… Há 20 anos atrás quando nós começamos, em países mais conservadores tínhamos de ter mais discrição, mas no geral nesses países mais conservadores pouco se fala de amor ou sexo, têm muitos tabus, são sociedades pouco abertas. E, acredito que no geral, as pessoas LGBTQIAP+, são mais fortes quando elas estão fora do armário… Então, sempre que eu terei um trabalho eu vou com o Cristophe.
Para nós é um grande prazer de estar aqui e encontrarmos amigos LGBT que lutam pelos seus direitos, e estamos felizes que no novo código penal tem avanços importantes para a comunidade LGBT em Angola. E talvez o maior problema a nível social é a mentalidade das famílias.
Eu gostaria de aproveitar essa ocasião para dizer especialmente para as famílias, pais e mães que têm filhos Gays, Lesbicas e Trans, vocês têm promover a felicidade dos seus filhos, pois com o apoio dos familiares a pessoa LGBT poderá contribuir com positividade na sociedade não passara por tantos problemas sociais. ”
“Nós não somos um grupo especial que mora em uma ilha, nós não somos pessoas especiais, nós somos pessoas completamente normais que fazem parte da sociedade, e os nossos direitos fazem parte de um conjunto de direitos humanos”
Grupos historicamente marginalizados têm sempre de dar mais de si para serem credibilizados nos seus trabalhos, pois, para o sistema patriarcal, pessoas LGBT e as mulheres no geral, não carregam capacidades suficientes para estarem em cargos de destaque.
O senhor Embaixador acredita que por ser Homossexual tenha de dar 110% de si para o seu trabalho ser credibilizado?
“Eu vou dar o exemplo de mulheres em posições de alto nível empresárias, ministras e juízas, elas sentem que têm que mostrar mais do que os homens que elas têm todas as qualidades para fazerem tais trabalhos, elas carregam mais críticas. Eu me lembro de ter lido entrevistas de mulheres que ocupam grandes cargos, dizendo que elas têm de demonstrar que têm todas as capacidades… E sim, talvez para nós também exista essa pressão, não nos podemos permitir fazer grandes erros.
Me lembro quando comecei o trabalho como Diplomata, há 30 anos atrás, eu e outros jovens Diplomatas fomos formados por um outro senhor Diplomata conservador. Nós eramos um grupo de jovens, todos homens, e o nosso formador falava sempre do senhor Diplomata e da sua esposa. Para ele, aquela era a única imagem que ele tinha sobre casal, e talvez esse mesmo homem não sabia que o mundo estava a mudar muito, que, visitando uma instituição Belga com um grupo só de homens já era estranho. Onde estão as mulheres?
Eu não me sentia muito bem naquela situação, e provavelmente tenha tornado discreta a questão da minha sexualidade, pois, ele só falava do senhor e da senhora (rsrsrs). E um de nos disse “você fica nessa formação, depois você vai deixar as suas próprias marcas, você vai funcionar com outras prioridades e mudar a carreira… E, alguns anos atrás, esse homem que na época era muito conservador, se tornou muito simpático com o meu marido Cristophe. Então, ele também evoluiu.”
Como o senhor Embaixador e o senhor Cristophe vêm o vosso casamento daqui a 5 anos? Pretendem ter filhos?
“Ter filhos nunca foi a nossa prioridade. Eu digo sempre que os nossos amigos são um pouco nossos filhos (rsrsrs). Tenho muita estima e respeito pelas pessoas que têm filhos, mas não é a nossa opção… Nos vemos a continuar juntos e continuando com o respeito que temos um pelo outro, e, sempre a manter o equilíbrio entre o casal e a liberdade pessoal. Não somos cópias um do outro, somos duas pessoas diferentes que avançamos na vida, e continuar assim é importante.
A palavra casamento é um pouco assustadora (rsrsrs), porque parece que queremos passar a controlar a vida do outro (rsrsrs). E eu dizia sempre: “vamos fazer esse casamento principalmente para garantir e proteger os direitos do Cristophe como meu marido”, e depois nada vai mudar, vamos continuar as mesmas pessoas, amigos, irmãos, namorados, e seres humanos que vivem com respeito. Utilizar essa relação como base para ambos desenvolverem juntos. Uma relação é uma base para voar.
Eu acho que nós LGBT temos a oportunidade e liberdade de formar os nossos próprios modelos de casais.”
Gostaríamos de saber qual a é visão do senhor Embaixador acerca dos movimentos LGBTQIAP+ em Angola, e, que conselhos deixa para eles?
“Infelizmente aqui nós temos uma equipe muito pequeno, e isso faz com que não tenhamos um contacto mais forte com os membros da sociedade civil. Mas temos os recursos humanos que têm sempre um contacto intenso com as associações da sociedade civil, foi por isso que tivemos o Cocktail com os membros dos movimentos LGBTQIAP+, no dia 17 de Maio, para estreitar mais ainda essa relação.
Quero deixar o conselho para as Associações daqui: não percam tempo com intrigas internas ou entre vocês. Sempre pensarem positivo e em união, e dizer, “essa é a nossa luta e devemos estar juntos, irmãos e irmãs trabalhando juntos”, nunca percam tempo com conflitos internos. É sempre um pouco difícil quando existe varias associações.
Segundo conselho, não se separem da luta pelos direitos humanos no geral. Nós LGBT temos de ter proximidades no combate contra a violência com base no género, e contra as crianças. Nós não somos um grupo especial que mora em uma ilha, nós não somos pessoas especiais, nós somos pessoas completamente normais que fazem parte da sociedade, e os nossos direitos fazem parte de um conjunto de direitos humanos. E grupos LGBT também têm de demonstrar solidariedade com os outros grupos, não ficar isolados.
E parabéns pelo trabalho que têm feito! Vocês têm aqui pessoas muito corajosas… Não percam a coragem mesmo avançando lentamente. Mantenham a irmandade e a amizade entre vocês, a amizade entre vocês é o mais importante. E também, aproveitem mais um pouco da vida.”
Por David Kanga
Uma super entrevista👏👏👏👏👏👏
Parabéns ao David Kanga pelo profissionalismo. Estou super orgulhoso❤❤
Amei a entrevista. Super inspiradora!
Eu nunca ia acredita se me dissessem que aqui em Angola têm um embaixador LGBT e casado , mano eu tô maravilhado aqui 🥺❤️