“Quando eu era mais novo eu gostava de brincar com bonecas”
Talvez essa seja frase mais emblemática dessa entrevista… Aliúde Arnaldo, o jovem de 23 anos, enfermeiro, Pansexual e ateu, não exitou em falar do seu trabalho como enfermeiro, e, como teve que lidar com a sua orientação sexual, sendo que, até aos 18 anos, o jovem era cristão.
Com exclusividade para a Queer People, o enfermeiro falou sobre um desamor, superação e o seu sucesso profissional.
Como foi lidar com a tua vida sexual na fase da puberdade, e, qual foi a reação dos teus familiares concernente a tua orientação sexual?
“Foi muito doloroso… A minha família é muito crente e na altura eu também era (actualmente eu sou assumidamente ateu rsrsrs). Eles me incutiam que eu devia lutar contra os meus desejos e motivações sexuais que, até então eram erradas (segundo eles)… Vivi em segredo e lutando contra mim mesmo durante toda a minha adolescência, claro que tive algumas pegações aqui e ali como qualquer pessoa (rsrsrs), mas sempre mantendo uma imagem digna aos olhos da família e de Deus (eu acho rsrsrs). Mas tudo acabou aos 18 anos, quando percebi que eu não tinha de ser aquilo que eu não sou na realidade, e, que eu tinha de viver a minha vida livremente, pois essa vida passa muito rápido, e não temos tempo de encarnar outros seres, quando devemos aproveitar esse bocadinho de tempo que nos resta para sermos nós mesmos… Deixei claro para a minha família que, a minha sexualidade é uma particularidade só minha, e de ninguém mais, pois, ela é só um aspecto da minha vida e eu não sou todo sexualizado“
Quando surgiu a paixão pela medicina?
“Quando essa pergunta é feita, muita gente diz que quando eram mais novos gostavam de brincar como médicos e tudo mais, mas essa não era a minha realidade… Quando eu era mais novo eu gostava de brincar com bonecas (rsrsrs)… Eu gosto de lidar/interagir com as pessoas, orientá-las e ouvi-las, e isso me transmite satisfação. Preferi orientar a minha vida profissional em alguma área que tivesse que lidar com isso diretamente, e a saúde foi a mais apropriada pra mim… Quando cheguei no ensino médio, não achei tão especial, era algo muito básico. Mas quando começamos com a fase de estágio, em que tinhamos de lidar diretamente com as pessoas, aquilo me marcou muito. Gostei de ver os profissionais de saúde a fazerem tudo o que sabiam e podiam para ajudar as pessoas. Foi apartir daí que a minha paixão pela enfermagem cresceu, e decidi fazer daquilo a minha vida”
Como foi lidar com a realidade de ser um jovem de 20 e poucos anos, pansexual e a comandar uma secção em que terias de atribuir tarefas/responsabilidades a pessoas bem mais velhas que tu?
“Embora o Aliúde sege muita coisa no dia-a-dia, no ambiente de trabalho me esforço em ser bastante profissional. É isso que se espera das pessoas, que elas continuem a demonstrar a ética e a deontologia profissional nos seus locais de trabalho, esse sempre foi o meu foco, e, os meus orientadores de formação profissional contribuíram muito para a formação da minha postura profissional… E isso é uma coisa que, independentemente da tua orientação sexual, é respeitável em qualquer ambiente profissional por pessoas profissionais. Então, era visível aos olhos dos meus antigos superiores que eu estava aí para trabalhar, e queria/quero o bem estar das pessoas… Por eu ter sido muito reto, apresentar sempre sugestões diferentes e estar sempre nas reuniões, isso chamou a atenção dos meus superiores, o que fez com que eu subisse de cargo (eu acredito). Sim, no meu local de trabalho as pessoas questionam entre eles sobre a minha postura (um tanto fora do padrão do homem hetero Cis), a minha forma de falar, dizem que eu desfilo muito (muito obrigado, eu desfilo sim rsrsrs), e isso chama atenção, mas ninguém consegue passar por cima disso porque acima de tudo eu esforço em ser profissional com todos“
Eles sabem da tua orientação sexual?
“Eu tenho alguns colegas que para além de colegas são amigos, e esses sabem da minha orientação sexual, alguns desconfiam, mas eu não acho que seja necessário chegar e bater a bandeira no meu local de trabalho, porque eu acabo mostrando isso na forma que lido e falo com eles… Mas não esperem uma noiva, vai ser muito complicado (rsrsrs)”
Normalmnete pessoas LGBTQIAP+ têm de dar sempre 110% de si para serem credibilizadas nos seus locais de trablho, principalmente se for uma pessoa não binária ou Trans, e, muitas das vezes esse reconhecimento não chega…
Por tu seres Pansexual, sentes que tens de dar sempre 110% de si para seres credibilizado no teu local trabalho?
“Não acho… Como eu já disse antes, eu primo muito pelo profissionalismo no meu local de trabalho, porque se eu não ser profissional e rigoroso com o meu trabalho vidas podem ser perdidas… Então é muito importante ser mais do que impecável. Muitos dizem que ser profissional de saúde é brincar de ser Deus. Já imaginou brincar de ser Deus? É muito complicado!”
Como foi quando soubeste que serias o chefe de secção da tua área?
“Quatro meses depois de eu ter entrado no ministério, eu fui promovido a subchefe de secção junto a minha parceira de trabalho. Foram muitos desafios encontrados, pois eu era e continuo sendo um dos mais novos, e tinha que chefiar pessoas bem mais velhas que eu, e os profissionais antigos são um tanto quanto mais arrogantes no quesito em aceitar serem chefiados por alguém bem mais novo que eles, e, muitos deles infelizmente não estão preparados para mudanças (que até certo ponto tem se vívido ultimamente no país). O que sinceramente me preocupa mas não me inquieta, pois todos nós temos de acompanhar o carro da mudança, porque se isso não acontece você fica para atrás, seja na vida pessoal ou profissional… Então, mudar para melhor é muito importante para qualquer área. Esse foi o maior desafio encontrado, porque na nossa visão Africana, o mais velho tem poder de tudo… Mas, por mais que os mais velhos tenham aceitado ser chefiados por alguém mais novo, nós nunca podemos deixar a voz da experiência ficar calada… Depois de três meses trabalhando como interino de alguém, eu fui promovido como chefe daquela secção, e, a primeira pessoa a saber foi a minha mãe (minha parceira em todos os momentos da minha vida), fiquei muito feliz por esse novo cargo”
Em algum momento as tuas questões pessoais abalou o teu lado profissional?
“Oh meu Deus(rsrsrs)! Sim! O término do meu relacionamento que abalou muito a minha estrutura como pessoa. Ninguém fica feliz quando termina um relacionamento, a não ser que seja com alguém que te tratava muito mal, aí sim é um livramento (rsrsrs), mas não era o meu caso. Isso foi em Novembro de 2019, e isso me fazia ir trabalhar sem energia, pois eu ficava muito mal porque eu gostava muito daquela pessoa. Mas o que acontece e se espera de todo profissional é: “não se mistura a vida pessoal com o trabalho”
“Quando chegas na porta do teu local de trabalho pega em toda a maleta de problemas que tu tens e deixa com o segurança, que nem a tua arma branca (rsrsrs), e quando tu tiveres a voltar para a tua casa pega a tua maleta de problemas e vai com ela pra tua casa (rsrsrs)… Mas foi um pouco fácil superar isso, pois no meu trabalho eu me divirto muito, na maior parte das vezes eu não me sinto cansado porque eu gosto daquilo que faço. Por mais que em algumas vezes eu chegasse meio abatido ou triste, aí eu recebia um paciente e eu preciso ouvir o mesmo, pois enfermeiros em determinadas situações têm de ter ouvidos de psicólogos, porque o paciente gosta de desabafar e é necessário… E assim consegui superar esse problema”
Já testemunhaste no teu local de trabalho algum ato de discriminação contra uma pessoa LGBTQIAP+ por parte de algum colega teu?
“Já tivemos oportunidades de atender algumas pessoas LGBT+, e o sentimento é diferente quando vou atender uma mana (rsrsrs) yha (rsrsrs)… Não se espera que profissionais de saúde tratem mal as pessoas, porque nós fomos formados para atender/socorrer todas as pessoas, independente da sua orientação sexual ou expressão de gênero. Não é ético tratar com indiferença alguém devido a sua orientação sexual, e quando eu estou presente e tenho que atender alguém da comunidade, o meu sentimento de carinho aumenta, porque eu sei o tanto de dificuldades que tivemos de enfrentar para chegar até aqui, e eu já mais vou permitir que alguém seja tratado de modo diferente, principalmente se for da comunidade… E não, nunca testemunhei alguma pessoa LGBT a ser destratada no meu local de trabalho, e nesse aspecto é de elogiar os meus colegas, pois tratam todo mundo por igual”
Acreditas que essa forma de igualdade que os teus colegas tratam os pacientes LGBTQIAP+ tem alguma influência tua?
“Eu acredito que sim! Porque o preconceito parte da ignorância. Quando as pessoas não entendem uma coisa elas tendem a temer e a desacreditar, e quando os seres humanos têm medo eles tendem a se proteger. Então, muita gente homofóbica acha que a homofobia é uma forma de proteção contra aquilo que não entendem. Então eu acredito que sim, que é pela experiencia que eles têm comigo que eles têm uma visão de respeito pelas pessoas da comunidade”
É bastante gratificante e importante, ouvir/ler de um profissional de saúde LGBTQIAP+, a sua trajectória profissional e pessoal, para o auto-conhecimento e auto-aceitação… Obrigado por compartilhar connosco um pouco da tua trajetória Aliúde…
Por David Kanga