Ema Domingos é uma cidadã angolana que, como a maioria, por conta da conjuntura social, políticas públicas não integrativas e descaso do governo, se viu obrigada a entrar no mercado do comércio informal para poder sobreviver.
“Eu ia no mercado comprar peças de roupas de 300 ou 500 kwanzas, chegava em casa, lavava e engomava as roupas, e revendia no meu bairro”
Segundo a ministra da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social, Teresa Dias, durante o 1ª Fórum Internacional sobre Reconversão da Economia Informal (PREI), o mercado informal em Angola absorve 80% dos empregos no país, isso é, de oito a nove milhões da força de trabalho.
Este cenário é fortemente mantido devido as políticas públicas que têm vindo a sufocar o investimento privado e impossibilitando o crescimento dos pequenos empreendedores locais. Tais acções têm servido como uma grande muralha para os empreendedores e comerciantes LGBTQIAP+ que, por questões de de identidade de género e orientação sexual, já têm vivido a margem da sociedade.
Ema Domingos, que desde muito nova tem estado envolvida ao mundo do comércio, esteve em conversa com a Queer People, onde partilhou os desafios de ser uma mulher Trans e comerciante, como tem lidado com a subida dos preços dos produtos no mercado nacional, e, como a venda de roupas de fardo se tornou a única opção de sustentabilidade económica para ela.
Quem é a Ema Domingos?
A Ema Domingos é uma mulher Trans, independente, trabalha por conta própria – sou comerciante –, activista social pelos direitos das pessoas LGBTQIAP+. Sou comerciante há muito tempo…
Qual é o comércio que tu fazes?
Eu vendo roupas do fardo, no mercado do Zango 4, há aproximadamente 5 anos. Mas desde os meus 16 anos eu já estava por dentro desse meio do comércio, eu acompanhava alguns dos meus parentes a irem vender os seus produtos nos mercados, e isso fez com que eu ganhasse experiência nessa área.
Com quantos anos começaste a comercializar os teus próprios produtos?
Após tantas cambalhotas na vida, decidi entrar no mundo do comércio entre os 23 e 24 anos. Mas antes de me tornar em uma comerciante eu andei muito, bati a porta de várias empresas, tentei de todas as formas possíveis para conseguir um emprego, mas não conseguia. Por conta dessa falta de oportunidades no mercado de trabalho, procurei assumir a minha independência entrando no mercado das vendas… Até porque eu já tinha experiência na área.
Quais foram os primeiros produtos que começaste a comercializar e em qual mercado começaste?
Eu comecei essa minha trajectória no mercado da Regedoria, em Viana, posteriormente fui para o mercado do Scongolences/Congoleses e de seguida vim aqui, no mercado do Zango… E desde início sempre vendi roupas e acessórios.
Como era a recepção das outras comerciantes quando tu chegavas nesses mercados para também seres uma das vendedoras de lá?
Na verdade sempre foi muito óbvio as pessoas perceberem quem eu era, ou a minha identidade de género. Então inicialmente muitas ficavam com um certo receio de me conhecer, ficavam resguardadas, mas depois fui conquistando a confiança delas e fomos nos tornando colegas da praça, no verdadeiro sentido.
Eu quando entrei nesse mercado, não foi com a intenção inicial de fazer amizades. Somos colegas de trabalho e cada uma meio que fiscaliza ou assegura também o negócio da outra.
Como foi aqui no mercado do Zango 4?
Foi exactamente a mesma coisa… todas nos damos bem, na base do respeito, mas não há aquela amizade que provavelmente muitos pensam. Somos colegas e cada uma aqui está a viver a sua vida de acordo a sua cultura, religião ou realidade familiar.
Como foi o início da vida de comerciante?
Apesar de ter sido difícil conseguir emprego naquela altura, eu fazia algumas prestações de serviços, e isso me ajudou a conseguir fazer poupanças para poder começar o meu próprio negócio. Inicialmente eu não comecei o meu negócio com “Quanto” (risos). Comecei com coisas pequenas. Eu ía no mercado comprar peças de roupas de 300 ou 500 kwanzas, chegava em casa, lavava e engomava as roupas, e revendia no meu bairro a mil ou mil e quinhentos kwanzas. Eu andava em vários mercados de Luanda para encontrar aquelas peças que estavam dentro das minhas possibilidades. Não foi da noite para o dia!
Como eu digo sempre, «as cambalhotas, quedas e desafios na vida não vão parar, tu vais cair e precisarás levantar novamente», e o jogo é assim, hoje perdes, amanhã levantas e continuas a batalha.
Como tens encarado a actual realidade do mercado angolano?
Tá difícil! Para nós que dependemos das mercadorias que passam pela alfândega tem sido muito difícil. Os preços andam tão altos que, em alguns casos acabamos por culpar até a zona onde estamos a comercializar os nossos produtos, quando a culpa é mesmo da alta inflação que enfrentamos. Antes o comércio de fardos não era um bicho de sete cabeças, mas actualmente se tornou mesmo um bicho de sete cabeças.
Quais são as dificuldades que tens encontrado para conseguires mercadorias?
As maiores dificuldades tem mesmo haver com os preços dos produtos. Por exemplo, você hoje vai comprar um balão de fardo a 25 mil, amanhã quando voltares para lá vais encontrar o mesmo balão a 50 mil (o dobro do valor), e isso é por conta da contínua desvalorização da nossa moeda, o Kwanza. E diante disso, só aumentar o preço das roupas no mercado informal não é suficiente, somos obrigadas a investir mais para aumentar a quantidade de produtos, diversificar o mesmo, para se tornar mais atrativo para o cliente.
Quais são os tipos de roupas que tu vendes?
Eu vendo roupas desportivas, e actualmente eu procuro fazer uma mixagem com roupas de praia, onde eu possa conseguir vender os mesmos em um preço ligeiramente mais baixo que o do mercado, onde eu vou ganhar menos em uma peça mas vendo uma boa quantidade durante o dia ou durante a semana.
Tens tido com frequência clientes LGBTQIAP+?
Eu acredito que por conta de razões culturais, política e familiares, são alguns dos principais factores que tem feito que eu receba poucos clientes abertamente LGBTQIAP+, sem contar também com os factores económicos.
Acreditas que se os comerciantes, como a Ema, ou os pequenos empreendedores tivessem pequenos investimentos, ou, acesso a créditos o cenário iria melhorar para vocês?
Acredito que sim… Como eu já disse antes, o cenário no comércio vai ficando cada vez mais difícil, e isso tipo de apoio/ajuda é muito importante para o crescimento dos nossos negócios. Sem contar também pela falta de conhecimento sobre os créditos que os bancos disponibilizam para o nosso sector.
Como é a tua relação com a tua família sendo tu, uma mulher Trans, que actualmente vives e cuidas de três sobrinhos?
A minha identidade e expressão de género não é, e nunca foi, um problema para a minha família. Sempre me respeitaram e me aceitam como eu sou de verdade. Hoje eu cuido de três sobrinhos meus, filhos da minha falecida irmã, e eles me respeitam como a tia que eu sou. E eu procuro afastar eles de ambientes que possam vir a ser tóxicos e que ponham em causa, ou em questionamento, a mulher que eu sou.
Como é a tua relação com os teus sobrinhos?
A nossa relação é boa! Me respeitam, se sentem bem na nossa casa, têm saúde (graças à Deus), e, temos uma relação boa como qualquer família.
Gostarias de deixar uma mensagem para aquelas pessoas LGBTQIAP+, e não só, que estão a passar por várias situações nessa vida e desejam empreender ou fazer um negócio?
Respeitem as fases em que vocês se encontram, tentem ouvir os vossos pais, em muitos momentos eles querem o nosso bem. Se vocês tiverem apoio dos vossos pais, não abandonem os estudos, estudar é muito importante para o nosso crescimento profissional… As coisas não acontecem da noite para o dia, é preciso ter dedicação e começar de algum lado.